27 Janeiro 2013
Praça de Tentas do Cabo
Enquanto figura máxima do Toureio apeado, capaz de levar o nome de Portugal aos grandes palcos do mundo taurino, veemente reconhecido pela sua entrega, empenho e como homem de cultura; foi com grande prazer que estivemos à conversa com esse ícone que é, o Maestro Vítor Mendes.
1. Á porta de completar 55 anos, e tendo dedicado mais de metade da vida a tourear, sente que o Toureio era a sua missão?
Bom, depende do que possamos entender como missão, eu antes de mais creio e sou defensor dessa frase feita que diz: “O Toureiro nasce, mas depois faz-se.” Ao fazer-se o Toureiro tem que entrar num contexto em que, quer o ambiente em seu torno, quer a sua paixão por esse mundo se mantenham vivos, para que este se mantenha motivado.
Aliás a sorte foi essa, porque sem ser oriundo de uma família de excelsos aficionados, o meu pai e um dos meus tios eram na verdade muitos aficionados, sobretudo o meu pai.
Curiosamente surge a oportunidade, aos meus três anos de vir viver para Vila Franca de Xira, numa época em que V. F. Xira estava mais personalizada dentro do contexto da ruralidade e da sua envolvência entre as lezírias e o Tejo, em simbiose com a criação do Toiro Bravo. Tudo isto, desde miúdo formou em mim uma curiosidade e uma expectativa de me manter neste ambiente, que era excepcional. Para um miúdo de 13, 14 anos a ansiedade gerada pelas esperas de Toiros, o ambiente que se vivia nas ruas, o medo de correr à frente dos Toiros e de repente estares ao lado de um matador de Toiros, – sim, porque daqui saíram grande parte dos matadores portugueses, se formos a ver – era fenomenal. Profissionais de Toureio surgiram em V. F. Xira não apenas ao nível da formação, mas também verdadeiros Toureiros que tiveram uma projecção internacional forte, o caso do malogrado, querido e recordado José Falcão, o Maestro Mário Coelho, o Maestro José Júlio. O Maestro José Júlio, que foi um dos meus Maestros ou promotor, nas minhas aprendizagens primárias.
2. Uma das datas marcantes da sua carreira e da história do Toureio a pé, foi o dia 13 de Setembro de 1981, em que recebeu alternativa pela mão de Palomo Linares em Barcelona, onde teve como testemunha o mítico José Maria Manzanares, tendo cortado 3 orelhas a Toiros de Carlos Nuñez. Como recorda este dia?
Esse dia foi uma mistura de sentimentos, e as circunstâncias fizeram com que fosse grandioso e histórico. Primeiro, porque estava a levar um sonho…tendo sempre por base o estatuto de emigrante, no meu país não tive oportunidade de ser eu e de me realizar com tal. Apesar da constituição salvaguardar esse tema, surgiam depois todo um conjunto de questões jurídicas e legais que não permitiam avançar. Então, assumi o dito estatuto de emigrante e emigrei para Espanha que é a pátria do Toureio.
Havia um projecto, havia uma ideia, agora tudo isto parece fácil, mas vejamos; eu era um jovem, um jovem ainda a formar a sua própria personalidade e saí de um contexto onde se vinha desenvolvendo parte dessa mesma personalidade… é difícil. Senti que estava a abandonar amigos, a abandonar família, senti que ia à descoberta de outros horizontes, outras relações, outros conhecimentos, outras experiências…dizer apenas que fui, parece fácil. Assisti à quantidade de jovens, que ao chegar ao outro lado da fronteira (portugueses poucos ou nenhuns, mas colombianos e mexicanos) mantinham-se um mês, ou mês e meio e voltavam para casa sem serem capazes de se adaptar. Quero matizar bem, que parece fácil e não é.
No meu caso concreto, a verdade é que havia alguma sustentabilidade, havia uma organização, profissionais taurinos, e havia um projecto para me levar para Espanha e me fazer novilheiro e posterior matador de Toiros. Numa célebre corrida de Toiros aqui em V. F. de Xira, em Maio de 1967 (porque eu comecei de bandarilheiro profissional), assistia uma das figuras taurinas influente em Espanha que era na altura também moço de espadas do Maestro Curro Romero. O meu desempenho estava às ordens de um matador de Toiros venezuelano, (que terá actuado igualmente nessa corrida, o Rayito de Venezuela), foi a última corrida de Toiros de morte que se deu em Portugal, com o Maestro José Júlio, o António Portugal e o Rayito de Venezuela. Essa figura taurina, terá ficado muito surpreendida pelas minhas qualidades demonstradas, eu sempre tive muita facilidade no tércio de bandarilhas e era de alguma forma espectacular, tanto que aportei na evolução do tércio de bandarilhas.
A questão aqui, era poder e conseguir ultrapassar toda essa ideia de ir para Espanha.
Temos que nos localizar na época e no tempo, as fronteiras estavam delimitadas, não pertencíamos à Comunidade Económica Europeia, o serviço militar era obrigatório, havia toda uma parafernália de condicionalismos, que não permitiam decidir de um momento para o outro; “Vou-me embora!”
Entretanto, lá se conjugaram as coisas e entre o taurino que referi, que era o Gonzalito e outra pessoa que muito colaborou, o Sr. João Oliveira (secretário da Santa Casa da Misericórdia), fui para Espanha e cheguei no dia 8 de Janeiro de 1978 no Lusitânia Expresso, depois de uma noite emocionado e nervoso.
Cheguei a Madrid, fazia um frio que rachava 5º abaixo de zero, não me posso esquecer, tive dois ou três dias em Madrid com neve e muito frio, e nessa altura do ano a temporada estava parada.
Logo na semana seguinte o Gonzalito manda-me novamente de comboio da estação de Madrid para a estação de Córdoba em Sevilha. É então, que me instalo em Sevilha – Calle Clara Jesús Montero em casa de uma Sra. idosa que alugava quartos, no antigo Hotel Triana, a tia Gertrudes era conhecida como La madre de los maletillas. Aqueles quartos de piso térreo eram um mundo novo para mim.
Na verdade, o que foi surpreendente é que quando cheguei, não sei se foi pelo talento, ou pela personalidade ou pelo carisma, ou por tudo isto misturado, dei logo nas vistas.
Então, na minha primeira actuação, mesmo nunca tendo estoqueado, fiz a apresentação em Haro (uma praça muito bonita, em La Rioja junto a Logroño, no Norte de Espanha) onde debutei sem picadores e sem nunca ter estoqueado um novilho. Cheguei e cortei quatro orelhas e um rabo. Hoje, ao falar sobre isto, parecem coisas fáceis, até ao recordar parece que tudo era fácil…mas era fácil dentro desse contexto entrega de vontade que querer e o público era muito sensível a isso.
As oportunidades foram surgindo, em 1981 (já em 80, mas sobretudo em 81) coloquei-me entre os 5 novilheiros de maior interesse, maior importância dentro do escalafón, e ao ter sido o triunfador da temporada como novilheiro esse ano, e tinha recebido na altura uma cornada também, na Monumental de Barcelona ofereceu-me tomar a alternativa na feira de La Merced em Setembro de 1981, com duas figuras do Toureio que não necessitam de apresentações, no caso o Maestro Palomo Linares na sua última reaparição e o Maestro José Maria Manzanares que sem dúvida era o abandeirado de uma Tauromaquia de transição, mais estética, mais profunda.
Tomei a alternativa, foi de êxito e ao mesmo tempo havia uma outra vertente emocional, que era precisamente a continuação da história do Toureiro a pé, não só em Portugal mas com a sua presença em Espanha. Porque, o último matador de Toiros português, que foi o José Falcão, tinha sido morto por um Toiro nessa mesma praça de Toiros a 11 de Agosto de 1974. Note-se que faltou um elo de ligação nessa corrente, porque houve uma geração praticamente interrompida, em que surgiram nomes de novilheiros como o António de Portugal, o Fernando Pessoa, e outros tantos novilheiros que tinham o seu interesse mas quando foram para Espanha…aquilo não resultou. Então foi uma geração perdida, até que surjo eu e dá-se essa ligação, essa continuação após a morte de uma pessoa tão querida como foi o José Falcão.
Depois de mim, eu fui o 20º matador de Toiros, vieram outros matadores o Rui Bento Vasquez, o José Gonçalves, o Manuel Moreno, mais tarde o Pedrito de Portugal, o Procuna. Numa perspectiva de abrir caminho talvez o que maior projecção obteve, mas exclusivamente como novilheiro foi o Pedrito de Portugal.
Mas claro, a trajectória profissional faz-se em consequência daquilo que se for desenvolvendo, ou seja, um individuo não pode chegar a este nível e bloquear, por lógica deve ir amadurecendo até chegar a um estatuto, em que naturalmente lhe proponha uma retirada, mas não é fácil.
3. Conseguiu manter-se durante duas décadas, 80 e 90, como figura de primeira, toureando nos principais eventos taurinos de toda a Espanha, nas feiras francesas Dax, Nimes, Bayonne, Mont-Marsan, etc e também em todos os países da temporada americana, Colombia, Perú, México, Equador e Venezuela. Faria tudo outra vez, ou alterava algum momento neste percurso?
Andamos sempre atrás dessa utopia que é a perfeição, que não existe.
Existem talentos e existem felizmente personalidades que de época para época vão mantendo e são a imagem de gerações continuas e isso é o que faz precisamente com que no campo das artes, como é o caso concreto do Toureio haja sempre uma importante evolução, senão estagnava e nós aborrecer-nos-íamos.
Vivi uma época de transição, nomeadamente em Espanha foi de transição a todos os níveis, social, politica, financeira num enquadramento já europeu, saindo também de Portugal depois de 74 com uma conjuntura politica controversa e de repente dá-se o boom. Os anos 80 foram bestiais, foram extraordinários, organizavam-se corridas de Toiros e espectáculos a torto e a direito, e digamos que foi para mim gratificante sobretudo abarcar um leque amplo de diferentes tauromaquias e lidar com diferentes personalidades dos vários Maestros. Ainda que possam pensar que não, o facto de eu ter a possibilidade de agarrar no telefone e poder falar com o Espartaco, o Capea, com o Maestro Martín “El Viti”, com o Maestro Romero, ou com o Maestro Paco Ojeda que são figuras do Toureio de épocas de transição é porque há um protocolo existente a esse nível. Isto quer dizer que há níveis que se alcançam e que quer queiramos quer não, – embora vivamos hoje em dia um sistema de certa forma anárquico no contexto da relação, não só na profissão e no mundo do Toureio, como noutros também – a verdade é que o profissional de Toureio salvaguarda muito a via protocolar.
Eu não vou dizer agora que iria mudar ou não, eu vivi a minha carreira profissional com os meus erros, com os meus acertos, com os meus triunfos, com os meus fracassos, com as minhas dúvidas, com os meus acidentes de percurso e o que posso constatar é que depois de ter toureado 1200 corridas de Toiros e ter passado este percurso, marcou-se uma época e viveu-se uma época, e estar entre aqueles dez matadores de Toiros de maior interesse, de maior aprovação a nível internacional nessa época e até passar a servir de referência, é motivo de grande orgulho.
Naquela altura era um Toureiro de nome no tércio de bandarilhas, e tinha aportado uma evolução técnica no tércio de bandarilhas, que assentava então na escola Valenciana em que o par de bandarilhas saía mais de perfil e rodava-se o pitón praticamente na saída da cara do Toiro, era como o Toureio a cavalo, na altura era para a frente a cilhas passadas e à tira, e o que eu aportei na altura também como evolução do que eu aprendi aqui com o Maestro José Júlio foi bandarilhar de frente trazendo o Toiro toureado de frente, medindo-lhe muito as distâncias e a velocidade, trazendo o pitón para onde saía muito toureado ao ombro de saída e reunido na cara apoiando o par rodava o pitón, o que na evolução do Toureio a cavalo aconteceu. O que é natural nos cavalos, é que corram para a frente porque têm quatro patas para correr em frente, os cavalos hoje em dia são verdadeiros harmónios, toureiam com o peito e reúnem, e quase dão lances com as garupas.
É visível, e verdadeiro que assim se passou, está escrito não sou eu que o digo.
A facilidade, a capacidade física, o conhecimento de terreno e o afane de demonstrar as capacidades, e o afane de triunfo foi precisamente por isso que obtive reconhecimento. Obtive obviamente reconhecimento, porque naquela mesma geração surgiram dois ou três matadores de Toiros que era também talentosos sobretudo no tércio de bandarilhas e organizou-se ali em grande parte um cartel, que era chamado o cartel matador de Toiros bandarilheiros, que era a sustentabilidade das grandes feiras, as praças enchiam sempre, as pessoas congratulavam-se de ante mão porque era um verdadeiro espectáculo, porque cada um desses talentosos matadores assumiam diferentes formas de cravar o tércio de bandarilhas.
Tenho que estar agradecido, e ser feliz e demonstrá-lo como tal, porque o mundo do Toiro é de tal forma elitista, de tal forma selectivo que é mais de vencidos que de vencedores.
Há muita gente na sombra, que foram profissionais de Toureio e que guardam um rancor, uma amargura, por vezes até alguns complexos, tudo isto entra precisamente nesse contexto, ou seja, por talvez terem lutado por isso e não terem chegado ao triunfo, o que não é indigno. A grandiosidade que se alcança ao mais alto nível, por parte de alguns talentosos ou profissionais assenta precisamente na morte, na ferida, no sofrimento, na amargura, na critica, na falácia desses que ficam pelo caminho.
É preciso psicologicamente ser muito forte e ser capaz de superar todas estas situações.
4. Por quanto tempo fez parte do Grupo Especial e como conseguiu manter-se?
Estive como matador de Toiros no activo durante 17 temporadas, 18 anos, 14 das quais no grupo especial.
O que foi bonito para mim sobretudo, foi…bom, as coisas assentam e projectam-se com base nas quatro ou cinco figuras existentes, eu tive uma sorte fantástica porque fiz parte dessa época de transição e evolução em que toureei com aqueles poucos que surgiram da minha geração, porque a grande maioria ficou pelo caminho, a projecção da figura que foi Juan António Ruíz Espartaco, a projecção do Yiyo que infelizmente e para glória do Toureio foi morto por um Toiro, mas ficaram muitos outros novilheiros pelo caminho. Isto relativamente ao estatuto de figura, ou Toureiro de 1ª categoria.
Agora, repare grandeza que é fazer o paseillo ao lado do Maestro Manuel Vázquez em Huesca, tourear ao lado do Maestro Curro Romero, do Maestro Rafael de Paula, tourear com o Maestro Antoñete, tourear com essas figuras que voltaram a tourear nos inícios dos anos 80, como o próprio Palomo Linares, o reaparecimento de Roberto Dominguez, a projecção de todas as figuras como o próprio Niño de la Capea, o Manzanares, as figuras de uma tauromaquia mais poderosa, Ruíz Miguel, Dámaso González, Dámaso Gomez, Andrés Vasquez…quer dizer…tendo toureado com essas grandes figuras e pilares do Toureio, eu toureei ao lado do Maestro Paco Camino e do Maestro Miguel Baez “Litri”. O meu querido Maestro Francisco Rivera “Paquiri”.
Vejam o que é abarcar todas estas tauromaquias, viver com figurões do Toureio com um poder extraordinário, viver a minha geração inserida nesses nomes o Yiyo, o Espartaco, o Pedro Castillo, o Pepe Luis Vázquez filho, e depois terminar a tourear ao lado de um José Tomás, de um El Juli, de um Ponce, parece que foi tudo muito simples, mas foi grandioso.
Enquanto que agora mesmo, esses próprios profissionais não têm a mesma oportunidade, nós hoje olhamos para os cartéis e vemos pouca variedade…Morante com Juli, ou Morante com José Tomás, José Tomás com…. Bom, naquela época era gratificante e procurava-se diferenciar, para absorver e viver diferentes tauromaquias e diferentes talentos que sim, são figuras do Toureio.
Depois uma grande sorte que tive também, porque não basta ter um projecto e estudar e ler.
Pelas minhas qualidade ou personalidade não sei, tive a oportunidade de contactar com as pessoas certas. Um dia sento-me numa mesa ao lado do Maestro Santiago Martín “El Viti”, com o malogrado Julio Robles de um lado e o Capea do outro…aquilo subjugava-me. O Maestro Francisco Rivera “Paquirri” viu-me num tentadero pergunta ao moço de espadas do mestre Curro Romero, que era o meu apoderado, o Gonzalito e diz: “Oye Gonzalo, quien es este chaval? Mándalo por la finca.” Eu passado 3 dias estava convidado a passar 15 ou 20 dias por lá e a viver ao lado do Maestro Francisco Rivera “Paquirri” e a conhecer o Maestro António Ordoñez e a dirigir-lhe a palavra e a falar com o Maestro Curro Romero e dirigir-lhe a palavra, e a ouvir ensinamentos e aconselhamentos, e estar com o Maestro Julio Aparício. Por exemplo, o Julio Aparício filho, vi-o dar os primeiros muletazos na ganadaria do Fernando Jardón, com 10 anos.
Fui desde logo integrado num ambiente apaixonante.
5. Quais são para si, as principais características de um Toureiro de elite?
O Toreio, o toreio é cósmico… é uma mistura de sensibilidade, de momentos encontrados num segundo preciso.
Há tantos Toureios, ou seja, nós aqueles que estamos nisto sentimos uma realização artística, e o artístico não corresponde a uma arte, não existe um só Toureio, como não existe uma só personalidade do Toureio.
Diferenciando épocas, se tivermos a oportunidade numa determinada época de conjugar o Toureio de capa do Curro Puya ou do Rafael de Paula, com um tércio de bandarilhas do Gaona ou do Francisco Rivera “Paquirri” , a arte , a profundidade e a toureria de um António Ordoñez ou a técnica de um Santiago Martin “El Viti”, a loucura de um Cordobés e a forma de matar de um Rafael Ortega, meu Deus. São Tauromaquias tão diferentes, são conceitos, personalidades, talentos que são diferentes e que ao longo de todas estas épocas convergiram no sentido de amamentar e manter o interesse do grande público e das novas gerações de aficionados a descobrir o Toureio em si.
Agora… qual o ponto de partida de tudo isto? O Toiro, e o Toiro é já resultado de cultura, resultado de uma selecção. O Toiro veio a mostrar, como em diferentes épocas aconteceu, em que por selecção o seu comportamento e as suas reacções têm que permitir que se toureie tão puro, tão bem, tão estético, tão coreográfico, com se toureia hoje. Mas há um perigo, é algo que se nos escapa, que é a perda de emoção. Corremos o risco, de ter público a pensar “ Se tivesse alguma presença de espírito, quase que seria capaz de fazer aquilo!”
6. Quem foram as principais figuras, os alicerces que lhe trouxeram o conhecimento e a sabedoria reflectidos na sua carreira?
Cheguei a ver algumas personalidades jovens, que me deixavam a pensar: “Gostava de tourear assim.”, tudo resultava tão belo, mas que entretanto não chegava ao público.
Chegava eu e arrimava-me e entregava-me àquilo com aquela ambição e aquele desejo de superar e o público reagia de imediato.
O Toureio vai muito mais para lá, por isso eu digo que o Toureio é cósmico, temos que fazer com as 10 ou 20 mil pessoas que nos estão a ver se sintam eles próprios Toureiros.
O Toureiro não é um Deus, depende da sua essência de humano e comum mortal, por isso eu digo relativamente aos que ficam pelo caminho, é porque algo falha na engrenagem, uma personalidade débil, o não conseguir ultrapassar a mesma dor, não conseguir contornar o medo e provar a si mesmo, uma quantidade de circunstâncias que são tremendas.
O factor humano é importante. Agora, há que ter referências. O tourear é um acto de inteligência, não de loucura, a inteligência do individuo tem de aperceber-se de tudo; do público, do Toiro, do profissional, etc. Tudo isto entra em breves fracções de segundo dentro de um momento em que o Toureiro tem que expandir e rebentar, e meter-te no bolso. É aqui que está a capacidade única de certos artistas. Por trás de um grande talento, deve existir uma personalidade tremendamente forte, que abarque tudo num contexto, que o projecte na direcção do triunfo, do único, do diferente, do apaixonante, do que vai ficar na história.
Eu sempre fui muito aberto às diferentes tauromaquias, e orgulho-me de ter tratado, falado e visto tourear grandes figuras do Toureio, mas a minha personalidade é uma personalidade mais de poder com os Toiros. Eu tinha o Toiro e eu agarrava o Toiro, moldava o Toiro e mesmo os Toiros complicados difíceis eu tinha que os doblegar, portanto o conceito de dizer assim “Tourear é obrigar o Toiro a passar por onde ele não quer ir”, é poder. Isto projecta-se numa direcção que é o Toureio Joselista ou Gallista, que era de poder com o Toiro.
Tive no principio aqui como formação o prazer de encontrar o Maestro José Julio, que tinha uma inspiração Andaluza com referência no Maestro Paco Camino. Depois, e foi onde me identifiquei claramente e tenho recordações inesquecíveis, como artista e como homem, foi o meu querido e recordado Maestro Francisco Rivera “Paquirri”, En gloria esté. Foi um ponto à parte, um extraordinário matador de Toiros e um homem muito especial.
7. Existem ganadarias mais aliciantes ao Toureio a pé? Quais?
Concordo que assim seja.
Isto é um grande negócio, talvez aqui não se note tanto mas numa perspectiva internacional e considerando sobretudo as grandes feiras, isto é um grande negócio. Temos que ter em conta que o mundo do Toureio não é alheio ao que socialmente se passa, o mundo do Toiro, a organização de grandes feiras, foram sempre uma montra do que ocorria na sociedade.
Em momentos de crise, as coisas recuam dão-se menos espectáculos, a própria sensibilidade dos aficionados altera valoriza-se mais o estético do que o emocional.
A selecção do Toiro vem evoluindo no sentido de criar um Toiro mais obediente, um Toiro que não obrigue em demasia o Toureiro que tem por diante, para que a figura surgisse mais no seu esplendor, por isso digo que há uma maior sensibilidade para o estético, para o coreográfico.
8. Qual a ganadaria que lhe fica na memória, pelo êxito que lhe proporcionou?
Ah sim! Eu era um pouco todo-o-terreno, mas a minha personalidade e o facto de poder muito com os Toiros, e a minha capacidade técnica implicava a necessidade de ter Toiros mais correosos, mais difíceis, mais combativos. Por vezes em quatro ou cinco passos, em Toiros de ganadarias mais comerciais, tinha o Toiro na mão e aquilo não resultava com tanta emoção.
No entanto, com um Toiro Vítorino ou um Miura por diante, e os Toiros davam complicações e eu era capaz de me impor e em 5 ou 6 muletazos era capaz de ligar faenas. A ganadaria de Vítorino Martín, foi uma ganadaria especial, muito especial, muito intensa, e perigosa. Foi aquela com que me identifiquei mais em determinados momentos da minha carreira profissional.
9. Sofreu 19 colhidas, algumas com sabor mais amargo. Nunca pensou em desistir?
Não. Bom, eu pensei em desistir antes.
Todos temos o nosso amor próprio, o nosso orgulho e depois de já ter triunfado em Espanha na minha época de novilheiro, sabendo que era merecedor desse reconhecimento e de certas oportunidades e depois pelo jogo de interesses das próprias empresas e representantes de jovens matadores (que depois não construíram carreira), não me davam as minhas oportunidades…é triste.
Só pensava que era tremendamente ingrato, aí sim por um par de vezes senti-me desmoralizado.
Sentia-me com sangue na guelra, e por vezes cortavam o meu caminho, porque eu era incómodo.
10. Protagonizou mais de 1000 corridas de Toiros, há alguma que recorde especialmente?
Por vezes não é o número que tem mais mais importância, há faenas e há momentos que são inesquecíveis.
Creio que, pelo que significou, pelo que custou e pela consciência da responsabilidade, foi a corrida de alternativa. Naquele dia, pensei para comigo, eu sou um matador de Toiros.
A sorte que tive, estar nesse dia ao lado de duas figuras de peso, na monumental de Barcelona, foi uma carga emocional, a recordação do Falcão como último matador de Toiros português com projecção internacional, morto naquela praça por um Toiro – foi um acidente – , tudo isso marcou muito.
A alternativa foi um dia inesquecível, mas naturalmente há um antes e um depois dessa data, como a minha primeira saída a ombros da monumental de Madrid. A praça de Madrid é a praça mais importante do mundo, cheguei anunciado com um zumbido de ambiente positivo, mas tinha o passaporte em branco, e os espanhóis têm uma personalidade muito própria, a acrescentar a isso a praça de Toiros de Madrid é muito particular, é muito sui generis…o público gosta de descobrir o Toureiro. Nesse dia descobriram-me, os Deuses estiveram de acordo, colaborámos todos e saí em ombros pela porta grande.
Agora, consciente que a partir desse dia triplicou a responsabilidade, cada vez que me via anunciado em Madrid, nem dormia.
11. Um Toureiro é um homem de fé, e emoções. Recorda-se um momento que o tenha emocionado particularmente?
Não foi só uma vez, felizmente lembro-me de muitas.
Uma questão que se banalizou e hoje em dia é triste, o indulto dos Toiros. Eu nunca olhei para o Toiro como se fosse verdadeiramente um inimigo, o Toiro era um cúmplice, um comparsa que fazia parte do jogo e tínhamos que estar de acordo os dois para triunfarmos os dois.
Eu vivi uma época, em que o regulamento não permitia indultar Toiros, isso veio muito depois com o objectivo de salvaguardar a raça brava e evitar a morte de muitos Toiros com excelentes caracteristicas para ficarem como sementais.
Houve emoções muito intimas, quase do foro animal em que me custou agarrar na espada para matar certos Toiros, foi de tal forma apaixonante, foi tão intimo sentir o Toiro, que é difícil explicar.
Agora emoções próprias, aquelas que são do foro humano, que te transcendem quando recebes uma noticia ou vês uma determinada acção…eu emocionei-me com o Toureio de algumas figuras e companheiros. Na minha intimidade, emocionei-me sobretudo quando nasceu o meu 1º filho.
Quanto à religião, a fé, tudo isso…eu acreditava mais num contexto que não o da imagem pregada aqui ou ali, isso via como algo artificial, eu entregava-me a algo que era cósmico. Acreditava e acredito que tem de haver algo tão superior para que tudo funcione como funciona, e como me sinto uma peça desse puzzle, emocionava-me. Servia-me de escape, esse ente superior, que não sei se é um Deus ou não, mas servia-me de escape.
12. Tal como outras artes, o Toureio apeado tem tido evolução?
Eu creio que sim, acredito muito que sim. Há inúmeras formas de evoluir, inúmeros estilos.
13. Sente que há sangue novo para assegurar esta arte, temos uma próxima geração de Toureiros?
Sim, estão a surgir.
O Toureio também se reinventa nele mesmo, se olharmos para este jovem matador de Toiros o José Tomás, que admiro e com tive o privilégio de tourear algumas tardes, e o José Tomás de hoje não é o José Tomás de uma fase branca, nem de uma fase verde, nem de uma fase azul, houve na realidade uma evolução em que se construí uma mítica em sua volta, que leva a que se ele espirrar todo o mundo diz “Olé”. O José Tomás não terá inventado nada, mas é o Toureio intrínseco, é o Toureio de sempre, é o Toureio de dentro, o Toureio do arrimar-se. Tudo isto parte do talento do individuo, da sua personalidade, da secura e da frieza com que se emprega.
A técnica é somente a “arma” que se utiliza para projectar o conhecimento, a ciência, agora o talento é algo muito intimo.
14. Na actualidade nacional, organize uma corrida de Toiros e diga-nos quem compõem o espectáculo (Toureiros, ganadaria e praça)?
Não é fácil essa resposta. Não desfrutando do Toureio actual, porque são tauromaquias diferentes não é fácil.
Mas, um Toureiro que está na minha linha, o Juli, um Toureiro com um poder e uma capacidade extraordinária, a profundidade e um temple de um jovem Manzanares e depois o Toureio do escopro do Michelangelo naquilo que é o Morante. Três tauromaquias diferentes.
Com uma corrida a investir de um Nuñez del Cuvillo, que dá sempre muito mais possibilidades, ou da ganadaria de Zalduendo, que é um tipo de Toiro que obedece bem aos voos da muleta, que se templa.
A actuar na monumental de Sevilha.
15. Um outro cartel para a geração anterior (Toureiros, ganadaria e praça)?
Se recuar 40 ou 50 anos gostava de ver o Maestro Paco Camino, o Maestro António Ordoñez e o Maestro Santiago Martín “El Viti”, à frente de uma corrida de Atanasio Fernandez, puro Parladé.
A actuar em Salamanca, seria um reencontro universal.
16. A proibição de Toiros de morte em Portugal, é um factor que retira atracção ao espectáculo, e faz com que o Toureio a pé não desenvolva. Concorda?
Nós divulgamos a integridade da festa dos Toiros, mas temos que ver também que são necessários alicerces.
Eu sou aficionado à corrida integral, entendo-a e identifico-me com ela , mas não no meu país.
Historicamente, socialmente, e apesar de existirem muitos aficionados em zonas pontuais, o nosso espectáculo assenta precisamente num espectáculo único que é, a corrida à portuguesa com a presença de cavaleiros e forcados. Este é o nosso espectáculo e temos que o salvaguardar.
Jamais me oporia à corrida de Toiros em Portugal, neste contexto.
Posteriormente, houve uma figura de Toureio portuguesa de nome, Manuel dos Santos, que foi empresário e que entendeu – e muito bem – que a evolução do ambiente taurino em Portugal e o surgimento de jovens matadores de Toiros lhe deram a oportunidade de inventar essa corrida de Toiros mista, então estabeleceu-se o equilíbrio durante duas ou três gerações, que se veio a perder nos últimos anos.
17. Como é que um Toureiro a pé avalia o Toureio a cavalo? Há uma rivalidade ou não se tocam?
Não, essa rivalidade não existe porque as modalidades não se tocam.
Até porque no Toureio a cavalo neste momento, as coisas foram-se-nos um pouco das mãos – houve um ou dois talentos que não vêm do Toureio a cavalo, vêm do rejoneo e o rejoneo vem do campo enquanto o Toureio a cavalo vem da escola de equitação, das actividades equestres- na realidade o Toureio a cavalo está num momento sensacional, mas por incrível que pareça na mão de cavaleiros espanhóis que foram aqueles que se preocuparam mais com a evolução desse Toureio, tornando-o heterodoxo e clássico quase ao mesmo tempo! Dá-me a sensação que o nosso Toureio equestre estagnou um pouco!
18. Quais são as principais expectativas para 2013?
Como Maestro, e em relação a todas as iniciativas e oportunidades que estão a ser dadas a esta geração, porque há uns 5 ou 6 miúdos que são interessantes, julgo que é bom manter a chama viva e o interesse nestes jovens que podem vir efectivamente a ser profissionais de Toureio, e de alto nível.
A perspectiva depois, volto a dizer que não é evolutiva porque agora mesmo estamos num impasse e como já disse antes, o mundo dos Toiros foi sempre uma montra do que se passava na sociedade. Estamos perante momentos de recessão e no campo das artes e dos espectáculos, implica necessariamente que essa recessão seja sentida.
Há que apostar na qualidade, obviamente quem sairá a ganhar são sempre as figuras, vão existir menos espectáculos e creio que seria uma boa oportunidade para haver uma reestruturação do próprio ambiente taurino, e o ambiente taurino não deve incidir exclusivamente numa ou outra empresa, nem deve assentar em jogos de oferta e procura.
Agora, em consciência penso que o que deve existir é a preocupação da manutenção da festa que também cabe ao aficionado e ao grande publico, para além obviamente do sector profissional e empresarial.
Há que instigar a nova geração de intervenientes, sejam Cavaleiros, Toureiros, Forcados ou Aficionados.
19. Quando falamos em Tauromaquia, qual é a primeira palavra que lhe surge?
É uma razão de viver e de afirmação como artista.
20. Quem é o Maestro Vítor Mendes?
É o Maestro Vítor Mendes, não há explicação.
Não posso falar de mim mesmo, mas sou sobretudo um homem, que enquanto jovem teve um projecto de vida e conseguiu lutar para chegar onde chegou, com base também em muito sacrifício e entrega.
O Maestro Vítor Mendes neste momento tem a preocupação de colocar esse afane de superação e carácter nas novas gerações.
Ana Paula Delgadinho