Há os que estão nas praças de touros sentados nas bancadas, os que estão nos curros e trincheiras, e, obviamente, os que estão na arena. Mas há também quem sai à rua com os amigos para ir ver os touros na rua, e há aqueles que são ausentes das corridas, mas que gostam de ver quando passam na televisão. O mundo dos touros não é pequeno e é apaixonado pelo touro. E correlaciona-se com vários sectores que não têm um vínculo directo ao dia da corrida, por exemplo, numa herdade ganadera não se vive do toiro, mas antes de outras produções agrícolas, pelo que a agricultura tem no touro bravo um companheiro omnipresente em grande parte do País.
O primeiro contributo do touro para a nossa bioesfera é o equilíbrio do ecossistema, uma vez que é um habitante que compõe o equilíbrio natural dos campos onde pasta durante toda a sua vida. O segundo contributo é uma expressão da capacidade humana, é um lembrete ao Homem da sua capacidade – positiva ou negativa – de manipular a Natureza. O touro ensina o ser humano sobre a capacidade que tem de criar um animal que não é nem doméstico, nem selvagem, que foi engendrado pelo Homem para ser uma expressão máxima de agressividade compenetrada.
Deste modo, o touro é um animal que existe não para ser comido (como a vasta maioria do gado bovino), não para nos dar leite (como uma boa parte das vacas têm por função), não para ser um trabalhador ou companheiro nas actividades agrícolas e sociais (como já foram vacas e bois ou são os cavalos), o touro é um animal que existe para ser o que é: bravo. O último lutador. O representante da eterna luta de superação que a humanidade tem de travar para evoluir e até para sobreviver.
A história da humanidade é a luta: primeiro contra predadores, depois contra inimigos humanos, permanentemente contra as catástrofes naturais, mais tarde contra as agruras geográficas e climáticas, sempre contra as doenças. Lutando para que a idade média de mortalidade seja cada vez mais tardia e com mais qualidade de vida até à hora da morte. Filosófico-espiritualmente falando, este histórico do crescimento humano é visto como uma luta entre o Bem e o Mal. Sendo estes valores relativos, do ponto de vista que reza a História – que é o Humano! – o Bem é sempre a sobrevivência humana contra as calamidades da Natureza e as desgraças da Vida, que são aquilo que se classifica como Mal.
Perante a pandemia com que nos defrontamos, sabemos que o Mal é o Covid-19. Mas do ponto de vista da Natureza, pode muito bem ser visto como um Bem: o reequilíbrio da Natureza através de um declínio populacional e de um comportamento mais adequado à saúde do planeta, que ante o confinamento baixou os índices dos vários tipos de poluição. Por isso o Bem e o Mal são relativos, há prismas de apreciação de um evento oposto que concluem na mesma classificação do evento. Porém, o ser humano tem a omnipotência na Terra. E para se lembrar da sua mesquinhez ante o mundo foram sempre precisos, ao longo dos séculos, aspectos da cultura que mostrassem ao Homem o quão pequenino ele é. Na nossa civilização, o último desses rituais culturais que iluminam os humanos sobre o seu papel na Terra, é a Corrida de Touros.
O toureiro entra na arena a arriscar a vida contra uma força da Natureza (elemento este, do qual o Homem já se afastou – numa atitude de supremacia – e que no ritual da tourada ele se volta a reenquadrar). O touro foi preservado como animal bravo fora do seu estado selvagem porque na Natureza já não havia lugar para ele. Porque a civilização ocupou esse espaço. Mas a continuidade da sua bravura foi alimentada desde que o uro, seu ascendente puro, pelo Homem, para que este não esquecesse da sua vulnerabilidade ante tudo o que o planeta lhe deu para lutar, para o lembrar da sua força. E se se deixou de pegar ou de lidar no meio dos bosques os antepassados do touro bravo, esta luta simbólica ganhou um âmbito muito mais vasto ao trazer as cerimónias iniciáticas do campo para as praças das urbes. Evoluiu-se para espaços ainda mais específicos e cada vez havia maior disponibilidade para que mais pessoas assistissem e se relembrassem do quanto são mortais ante aquilo o selvagem que nos rodeia.
E agora que o domínio das cidades é cada vez maior, mais precisamos de ser lembrados que a Terra não é uma colmeia onde somos todos a abelha-rainha. A Terra é o nosso anfitrião e é temperamental e nós somos abusadores. E quando um touro entra numa artena e ameaça a vida de todos os humanos que nela estão, e um deles luta com ele até à sua rendição, sabemos que podemos vencer. E não se trata de uma vitória qualquer, é uma vitória dentro de regras apertadas e ditadas por aquilo que nos separa dos restantes seres vivos: a estética. Todos os animais têm casas onde se recolhem, nenhum animal se preocupa em ter beleza nos seus espaços de recolhimento, isso é a epítome do que é a estética e de como o nosso prazer em ter uma vista bonita da janela (o mais básico exemplo que me ocorre de estética) existe em nós e não existe no nosso cão, que usufrui da mesma janela.
Assim, já podemos perceber a cultura tauromáquica como um ritual da nossa cultura para nos lembrar da pequenez do Homem, um culto à humildade de quem se dispõe a lutar pela Humanidade contra um Mal, e que muitas vezes vence, dando esperança na continuidade da glória humana, mas também perde, frisando que nem sempre o Homem consegue aquilo que quer. E é uma morte cuja culpa muitas vezes reside em erro humano, erro de interpretação da Natureza e pago com o mais alto preço.
Podemos ainda perceber que a tauromaquia é uma forma de preservação de todo um ecossistema, e também um milagre humano em conseguir cruzar os animais de forma a manter a linha de lutadores que são os touros bravos. E é ainda fácil de perceber que é um sustento artístico para quem assiste, vendo arte em movimento, tão difícil de interpretar por quem não esteja aberto a todo o evento.
Além de tudo isto, o mundo dos touros envolve os aficionados e os protagonistas, com muitos actores pelo meio, e se estes querem ajudar a preservar aquilo que sabem amar, têm, neste momento de lutar. Como diz o nosso hino, “marchar, marchar”, não contra os bretões como originalmente dizia a letra, ou contra os canhões como hoje em dia se pode escutar, mas antes contra a ignorância e a soberba de quem desconhece a nossa cultura e falta que ela nos faz.
A cultura, taurina ou outra, enforma um povo, compõe uma civilização e identifica uma sociedade. Os portugueses não são menos portugueses sem os touros, mas são melhores portugueses com os touros. Há uns anos, no tempo do Cavaquistão, dizia-se com frequência que o País era Lisboa e o resto era paisagem. Essa mentalidade perdura, porque as cidades (Lisboa e os outros centros urbanos, cada vez maiores) são ilusões da vida. Os citadinos vivem uma realidade coartada, porque as cidades não têm um corpo, são meros umbigos. Quem nasce e cresce numa cidade, acha que um jardim é a Natureza e que uma praia é um lugar selvagem. As pessoas que vivem em prédios, sob o ruído de carros e aviões, entre vizinhos com quem embirram, perante horas de trânsito para pequenas deslocações, não sabem que os seus alimentos são bichos amorosos, que as plantas precisam da chuva que tanto os aborrece e que se não houver incomodativos insectos o ciclo de vida é interrompido. São pessoas que não conhecem o corpo da estrutura que nos sustenta, em que vacas de olhos grandes e queridos morrem para serem bifes; as alfaces e couves crescem onde deveriam pastar veados e abundar coelhos, perseguidos por raposas, enquanto os lobos cercariam a caça maior. Para alimentar as cidades lutou-se muito sobre aquilo que era ‘Mal’, por não permitir que houvesse alimentos suficientes ao crescimento da humanidade, que preferiu viver em urbes pelo simples motivo que era mais seguro do que no meio dos animais.
Por isso digo que as cidades, são meros umbigos, que só se vêm a si mesmos e por isso reduziram a sua sabedoria sobre o resto do corpo, que vive a Natureza e a gere para que o Ser Humano prolifere. E por isso geraram a tribo que se revê no PAN, que embora mais não seja do que um pequeno clã, é como uma erva daninha alimentada pela falta de conexão das cidades com o campo. Numa autêntica conversa de café online, cujo título era ‘Touradas em Portugal: o Princípio do Fim’, mediada pela deputada Inês Sousa Real e com a participação do veterinário Gonçalo da Graça Pereira, o apresentador João Manzarra, Nuno alvim, fundador do movimento Portugal Sem touradas e Sérgio Caetano, coordenador da Plataforma Basta de Touradas.
Um grupo que não conseguiu reunir 300 pessoas ao mesmo tempo a ouvir a sua conversa. Um grupo que disse mentiras atrás de mentiras, que podem tanto ser fruto de ignorância como terem o objectivo de enganar quem os ouve, um grupo que se diz representativo da maioria dos portugueses mas que entre os menos de 300 assistentes ao programa teve na sua maioria os aficionados ao touro. Todos os argumentos que evocam padecem de falta de conhecimento de causa e estão enraizados numa crença, numa maneira de ver as coisas que não tolera outras visões. Têm o pensamento deturpado pelo mundo da Walt Disney, em que os animais falam e vestem roupas, caminhando em duas patas como nós e tendo a mesma visão da existência dos humanos, a par de das mesmas emoções. Isto é o que resultou o afastamento das cidades do campo, o mesmo afastamento que permitiu, por exemplo, o aumento da poluição do ar…
Não adianta ser-se vegetariano, não adianta querer usufruir apenas de energias renováveis. Não são medidas radicais que nos retiram da nossa categoria de Ser Humano do século XXI – que temos de aceitar – para nos integrar naquilo de que nos desintegrámos. É a gestão daquilo que o Homem obteve como avanços tecnológico-científicos até hoje, com uma melhor gestão da sua ocupação de espaço na Natureza, reequilibrando a mesma nos aspectos em que ainda se pode ir a tempo de a salvar, que vai abrir o caminho para haver futuro. E o touro faz, culturalmente, parte desse futuro, pelo seu papel vital na lembrança moral da humildade que devemos ter ao desempenharmos o nosso papel na cadeia alimentar do ecossistema que é de todos.
Por tudo isto, esses tantos actores da tauromaquia, desde a bancada à arena, precisam de marchar para serem heróis. Somos heróis quando educamos os ignorantes sobre o que é o mundo taurino, somos heróis quando – do alto da nossa humildade – afrontamos os soberbos detentores de uma meia verdade que consideram uma verdade absoluta. Mas sobretudo somos heróis quando decidimos sair às ruas e, sem medos ou vergonhas, dizemos ‘Não’ à matança do Touro.
Impedir a realização de corridas de touros quando o primeiro espectáculo pós-confinamento se realiza numa praça de touros é querer extinguir a raça brava. Não há um só argumento válido para que não se realizem corridas de touros havendo concertos e comícios. Contudo, não há uma resposta para quando se poderão realizar. É um desrespeito por toda uma classe profissional, por um sistema económico e por eleitores e futuros eleitores que desfrutam das corridas de touros. Só que, acima de tudo, é uma sentença de morte aos valores morais da nossa civilização, que se transmitem num ritual de Bem contra o Mal e no saber apreciar da Natureza na sua faceta bela e – acima de tudo – na sua faceta perigosa. Porque a história da sobrevivência humana foi sobretudo expressa no ultrapassar de perigos, tais como o investir de um touro.
E a investida do touro não é falsa, nem provocada, é a atitude natural de um animal desenvolvidos pelo homem para nos lembrar a onde pertencemos: à Terra. Um planeta onde o equilíbrio se obtém entre perdas e ganhos, onde um leão tem de comer uma gazela não só para que ele sobreviva, mas para que todo o ecossistema se mantenha.
Os que estão mais directamente próximos às corridas de touros precisam manifestar-se, mostrar que não é só injusto não estarem ainda permitidas as corridas de touros, é também irresponsável. O empresário José Luís Gomes e os cavaleiros de alternativa António Ribeiro Telles, Luís Rouxinol e Rui Fernandes acorrenteram-se simbolicamente ao portão do Cmapo Pequeno, e foram insultados na Assembleia da República pelo déspota que é op André Silva. Mas o que eles demonstraram é o que temos de continuar a demonstrar: somos muitos, podemos não estar sempre unidos, mas o touro une-nos. A Prótoiro, as associações de toureiros, forcados, empresários taurinos e das tertúlias de aficionados, precisam ser os conjurados do ano 2020 e repor a ordem na Festa Brava, mostrando a força que de facto temos: a da razão, apesar de a sondagem do Facebook promovida pelo PAN nos ter dado a vitória, ela foi à tangente, apenas 53% dizeram Sim a recuperar as touradas no Campo Pequeno e os restantes 47% foram pelo Não…