Setembro 2013 – Samora Correia
Quando se é apaixonada pela arte de tourear, quando se vive com a vontade de o fazer desde cedo, e a motivação de o praticar todos os dias, só se pode ser toureira.
Sónia Matias foi a primeira cavaleira de alternativa em Portugal, foi crescendo e conquistando a sua posição, do gosto ao sonho, teimosamente foi vingando e hoje vemos num universo masculino a menina dos cabelos loiros, a lidar com a forte garra que a caracteriza, alegrando as nossas praças que a acolhem com tanta afinidade.
Ser cavaleira tauromáquica é para muitas jovens um sonho. Como foi o seu primeiro passo? Aquele que vai do gostar ao iniciar.
Eu desde muito cedo comecei a montar apesar de não ter cavalos, montava naqueles cavalinhos de aluguer na praia. Fazia birras tremendas para que me deixassem passar os fins-de-semana e os horários extra-escolares a montar os cavalinhos de aluguer na Costa da Caparica. Onde verdadeiramente comecei, o primeiro contacto foi aí. Para além disso, eu acompanhava os meus pais, que eram aficionados sem serem demasiadamente loucos por corridas de toiros mas eram aqueles aficionados das 5ªs feiras no Campo Pequeno e mais uma ou outra corrida nas proximidades de Lisboa, e foi de certeza todo o fascínio da festa, o toiro, o cavalo, o pasodoble, os trajes, o público, tudo o que envolvia a festa brava que despertou em mim um fascínio grande. Eu como sempre fui uma miúda muito convicta, com 13 anos de idade decidi que queria ser toureira.
Disse ao meu pai: “Pai, eu quero ser toureira!” Claro que inicialmente não foi uma ideia muito bem recebida, porque a família pensou que eu não estaria bem, acharam que não era uma ideia natural de uma menina de Lisboa, onde fui nascida e criada. Enfim! As relações que tinha como campo eram escassas, tinha um primo que era campino, mas era apenas isso, não tinha famíliares com ganadarias ou com coudelarias de maneira a que eu pudesse ter essa proximidade.
Simplesmente apaixonei-me, tal como nos apaixonamos por uma pessoa, eu apaixonei-me por esta profissão.
A afirmação no panorama tauromáquico não é de todo fácil, há muito a provar. A Sónia foi vencendo várias etapas, até que chegou o dia 19 de Junho de 1999, o dia de tomar a alternativa. Como descreve esta trajectória?
Foi boa, acima de tudo foi boa. Embora tenha sido uma trajectória com muita “luta”, a realidade relativamente à minha pessoa é que senti algumas dificuldades. Tive de iniciar tudo do zero, não tinha infra-estruturas nenhumas, não tinha sequer uma base para iniciar esta carreira, não tinha instalações, não tinha cavalos, não tinha camião, não dispunha de um conjunto de factores que são essenciais e que carecem de uma estrutura bem montada. E também pelo facto de ser mulher, senti algumas oposições não vou dizer que não.
Romper num universo masculino, terá sido no mínimo desafiante, quão difícil foi conquistar o reconhecimento e respeito que lhe têm hoje em dia?
Neste momento não sinto que o facto de ser mulher seja um obstáculo, mas em tempos senti. Recordo-me de me dizerem; “Não vale a pena investir muito dinheiro, quando começares a namorar deixas de tourear!”
Deixou de ser complicado, quando as pessoas que andam na festa se apercebem que andamos com o mesmo direito de igualdade, com a mesma dignidade, com a mesma dedicação, com a mesma paixão, ou até mais, e acabamos por conseguir adquirir o respeito.
A minha realidade nunca foi facilitada pelo facto de ser menina, nunca escolhi um toiro sempre fui a sorteio, sempre estive em pé de igualdade com os homens presentes na arena, e aos poucos fui conquistando o meu lugar. Recordo-me de em miúda ter chorado bastantes vezes, por me terem retirado deste ou daquele cartel, eu achava isso absurdo mais a mais quando se notava uma emancipação da mulher não só na tauromaquia como em outras áreas, porquê travarem-me a mim se eu nem pedia facilitismos?! Nunca pedi para levar um toiro mais pequeno, nem nunca escolhi uma ganadaria, queria tudo pelo bem, pela igualdade e sentia-me muito injustiçada, não compreendia! Vinha muitas vezes para casa a perguntar-me “Porquê, se gosto tanto disto como todos os outros colegas que optaram por esta profissão?”…sentia-me magoada. Abdicava de tudo, durante anos da minha vida, não tinha férias de Verão, convívios com os amigos, cinemas, tudo o que os jovens fazem eu não fazia, mas não me arrependo nada voltaria a fazer tudo o que fiz até aqui. Consegui manter-me e chegar onde cheguei, sinto-me compensada.
Assumindo o seu pai o papel de apoderado, diga-nos; A cumplicidade desta relação é um alicerce na sua carreira?
É sem dúvida alguma. O meu pai é meu apoderado desde 1997, já lá vão 16 anos. É engraçado que por vezes em situações mais “quentes” faço questão de o relembrar; “Pai, não te esqueças de uma coisa, os toureiros deviam ser filhos órfãos e eu sou tua cavaleira não sou tua filha!” De vez em quando temos de saber distinguir as situações, vou-lhe dar um exemplo; uma vez em Beja tive uma queda grande e o meu pai quando veio a acompanhar-me já vinha a chorar, eu disse-lhe: “Pai, não tens de chorar, neste momento és meu apoderado. Na praça és apoderado, lá fora falamos.” A minha intenção foi sobretudo transmitir-lhe calma, no sentido de o tranquilizar enquanto pai.
Sempre que acontece um acidente, se a situação estiver controlada o meu principal objectivo é tranquilizar toda a família.
Voltando ao tema do pai apoderado, é uma vantagem, todos os apoderados são bons, mas quando é do sangue acaba sempre por haver outro carinho, estou feliz por ter o meu pai como apoderado.
Quais são as suas principais referência enquanto toureira?
Eu sempre fui muito espontânea, sempre. Uma das primeiras casas que frequentei foi a Torrinha e acabei por escolher um toureio completamente distinto da base do António que me acompanhou nesse tempo. Aprendi muito naquela casa, felizmente, mas sempre tive muita convicção a fazer o que sinto. Sou uma toureira alegre, como se diz na gíria, sempre “meti a carne no assador”, sempre toda a vida desde nova até à actualidade.
Acima de tudo, tento transparecer o que sinto. Naturalmente há comparações entre o meu toureio e o de outros colegas, mas nunca copiei ninguém, faço sempre o que sinto é tudo muito natural e de acordo com a minha personalidade.
No próximo dia 26 de Dezembro completa mais um aniversário, como julga que é apreciada pela sua geração?
Sou vista como um motivo de orgulho, sem dúvida alguma. Recordo-me por exemplo de quando andava na faculdade nunca ter revelado quem eu era, até que surgiu um colega meu que é forcado e as pessoas começaram a associar. Foi muito engraçado, porque os colegas não faziam a mínima ideia, principalmente aqueles que não pertenciam à minha turma e a partir de dada altura deu para perceber o orgulho que sentiam, por me conhecerem e por se relacionarem comigo. Não posso esquecer também os amigos de infância, que transmitem igualmente o orgulho de serem meus amigos e não só, têm orgulho por me verem atingir os meus objectivos, porque amigos seriam toda a vida. Por vezes abordam-me a propósito do jornal que tínhamos no 5º ano, que era “A floresta”, dizendo: “Recordas-te que numa entrevista disseste que querias ser toureira? E não é que conseguiste?”
Já tivemos oportunidade de a ver tourear nas mais variadas praças, nomeadamente na mãe de todas as praças de toiros, o Campo Pequeno. Sente-se sempre segura? Quais são os factores que lhe causam maior ansiedade?
A sensação de fracasso é o pior para qualquer toureiro, é o pior factor de ansiedade. Todos temos medo de falhar. Eu acredito muito em mim, sempre acreditei, mas há sempre uma pontinha de ansiedade em ralação à possibilidade de falhar. As coisas não dependem só de nós, e o toiro é bastante importante para que as coisas resultem de uma maneira ou de outra, não quero com isto dizer que com um mau toiro não se possa ter uma boa lide, mas é diferente de ter um bom toiro e fazer uma lide excepcional.
Ainda assim, sinto-me uma mulher segura, penso que qualquer toureiro ou toureira que entre numa praça tem de se sentir seguro, independentemente da praça. Embora, eu tenha uma filosofia de vida que passa por dar o meu melhor em todas as praças. Seja numa praça de lata que fica na localidade que nem consta no GPS, como seja no Campo Pequeno, temos de dar sempre o nosso melhor. As pessoas compram o bilhete, são dignas de ter um bom espectáculo.
Como se compõem a quadra que a vem acompanhando esta temporada?
Tenho uma quadra coesa, diversificada e não muito extensa até porque quantidade não é sinónimo de qualidade. Tenho cavalos que me ajudam, que ultrapassam alguns problemas que possam estar relacionados com toiros mais complicados. Sou uma priveligiada, tenho cavalos com diferentes características e quando é o momento certo eles respondem à altura. Tenho o Sultão que é um cavalo que eu utilizo de bandarilhas um lusitano puro, tenho o Monforte que é um cavalo com ferro Luís Rouxinol que eu utilizo também de bandarilhas, tenho um cavalo com ferro Maria Guiomar Cortes Moura que é o Mágico o qual utilizo de saída, tenho o Carnaval que é também um cavalo que utilizo de saída, é uma das novas aquisições desta época com o ferro Teixeira Duarte, e por fim o Atrevido que é um cavalo com que normalmente remato as sortes, é um cavalo muito do agrado do público um árabe puro que trouxe dos EUA, é diferente, pequenino, mas muito gracioso. Tenho entretanto cavalos novos a iniciar, que terão futuramente lugar na minha quadra.
Faz um treino regular com os seus cavalos? Como é o seu dia de trabalho?
Eu passo praticamente o dias nos cavalos. Há sempre qualquer coisa para se fazer com eles, se não for a treinar é a mimar, também faz parte. Treino diariamente, sem horas especificas para o fazer, faço-o de acordo com as necessidades de cada cavalo. Por vezes há um cavalo que não andou bem em praça, nesse caso vamos ter de investir um pouco mais de tempo com ele para corrigir erros, outros requerem um treino regular para responderem bem, enfim, passo praticamente todos os dias aqui nos cavalos. Estou dedicada a eles a 100%, terminei o meu curso já há uns anos mas não exerço qualquer actividade nessa área.
Por muito que se conheça o toiro, apenas quando se abrem as portas dos currais percebemos o que lá vem. Que tipo de toiro se identifica com o seu estilo de toureio?
Normalmente adapta-se o estilo de toureio ao estilo do toiro, mas eu prefiro toiros que andem, toiros bravos, do que propriamente um toiro que se pare. Porque repare, um toiro que se para complica muito uma lide, eu gosto de movimento, prefiro um toiro que corra que dê “luta” até porque o meu estilo de toureio é alegre e com movimento.
Concorda quando se diz que as ganadarias já não seleccionam para a bravura, mas sim, trabalham no sentido de fazer o toiro “à medida” dos toureiros?
Eu penso que desde sempre foi assim, tudo na sociedade se tenta adaptar pensando naquilo que é mais positivo, mas por vezes nem sempre assim se consegue, porque neste caso mexer com a genética não é uma coisa fácil. Mesmo tendo as melhores ilusões, na expectativa que as coisas resultem, nem sempre se consegue e julgo que é isso que tem estado a acontecer, determinadas ganadaria perderam alguma bravura, as coisas não estão a resultar e eu não acredito que os ganaderos queiram que assim se mantenha, a realidade é que por vezes não se consegue chegar aquele ponto de exactidão.
Tem que haver emoção!
Gostaria que nos revelasse, no seu entender, quais as ganadarias e coudelarias que lhe merecem maior destaque?
Na minha opinião, determinadas ganadarias de onde se esperavam os toiros mais complicados, têm sido as melhores. Neste momento é complicado eleger uma ganadaria, porque a realidade é que temos tido várias surpresas, nomeadamente com ganadarias que à partida poderiam falhar, ou iriam mansear acabaram por ser mais bravas, outras que criam maior expectativas estiveram abaixo. Neste momento, tudo depende do factor sorte, se nos toca um toiro bom ou não.
Relativamente às coudelarias, é injusto para mim estar a falar porque há tantas coudelarias interessantes. Acima de tudo, tenho o exemplo aqui em casa, este cavalo Sultão que é o meu preferido não veio de nenhuma coudelaria. Tive o privilégio de ter um cavalo toureiro que não é filho de nenhum cavalo toureiro e que a mãe é uma égua que estava em Aveiro, no entanto surgiu um cavalo com estas aptidões. Claro que a genética ajuda muito e há coudelarias fantásticas direccionadas para o toureio, como há outras para outras áreas.
Se lhe pedir que recorde a lide que lhe causou maior emoção, qual seria?
A lide da minha alternativa, sem dúvida. Correu muito bem, apesar de reconhecer que houve lides superiores à da alternativa, esta será a que vou recordar detalhadamente, desde a saída do toiro, ao comportamento, os ferros que coloquei, as flores, enfim todos os pormenores. É um dia muito especial, não só por ser o dia da minha alternativa, mas também por ser a 1ª mulher a tomar a alternativa de cavaleira profissional, é o realizar de um sonho. Para mim foi a sensação de chegar à cereja que estava no topo do bolo, durante todos aqueles anos fui subindo devagarinho e naquele dia consegui tornar-me profissional. Era impensável para determinadas pessoas uma mulher em Portugal enveredar por esta profissão, porque houve toureiras que tentaram e deram bastante à festa mas não chegaram a enveredar pela vertente profissional. O facto de eu conseguir atingir esse patamar foi uma satisfação tremenda não apenas a nível pessoal, mas também foi para demonstrar que é possível “Vêm como nós mulheres também conseguimos!”
Foi uma tarde fantástica, com a praça quase cheia em Santarém, estava uma tarde lindíssima, o toiro não era o que eu idealizava mas deu-se a volta ao toiro.
Certamente que guarda orgulhosamente uma série de troféus, tem algum que tenha sido mais marcante?
Não, gosto de todos em especial. Eu sempre disse, que há situações de ingratidão na atribuição dos troféus, e não quero com isto dizer que se passa só comigo porque vejo isso acontecer com outros colegas, por isso digo o que tenho dito sempre: “O melhor troféu são os aplausos do público!”
Todos os troféus são bonitos, mas o aplausos de um público satisfeito é o que conta na realidade.
A temporada atinge o seu ponto alto em Agosto, quando a Sónia toureia com mais frequência. Quem é a equipa que lhe dá suporte e a garantia de que está tudo em condições para a próxima corrida?
A família. Eu tenho uma família fantástica, sou uma privilegiada. Começando pelo meu pai que é apoderado, tenho nos cavalos a tempo inteiro o meu irmão, que sai para as corridas um miúdo com vinte e poucos anos está sempre aqui comigo, o motorista do camião é meu primo, o tratador dos cavalos é meu primo, a minha moça de espadas é a minha irmã e assim estão todos envolvidos naquilo que eu faço.
Este ambiente familiar permite que as coisas sejam feitas com outro carinho, outra dedicação e tudo cuidado ao detalhe.
Os trajes sou eu que os escolho e a minha irmã Tânia assegura que tudo está pronto a utilizar.
Sofreu alguns acidentes em praça, uns com sabor mais amargo. Nunca pensou em desistir?
Nunca, jamais. Antes pelo contrário, de todos os acidentes, tive dois que me deixaram mesmo incapacitada de voltar, um por indicação expressa do hospital e outro porque rasguei o músculo por completo e era impossível tourear. Nunca pensei em desistir por esse factor, e relativamente às lesões não as vejo como medalhas, são ossos do ofício. A situação mais delicada que tive, foi quando me morreu um cavalo na arena, foi no dia em que abri o músculo, e fui todo o caminho a chorar pelas dores insuportáveis, mas sobretudo pela dor de ter perdido um cavalo, um cavalo que apesar de não ter há muito tempo era um colega de trabalho e eu senti as suas últimas respirações sem poder fazer nada. Foi das piores situações que passei na minha vida profissional.
Durante o defeso, gostaria de investir mais numa carreira internacional ou prefere ficar em Portugal e consolidar os bastidores para a temporada seguinte?
Preferia partir para uma carreira internacional, eu gostava de tourear todo o ano. Quando se aproxima o fim da temporada, costumo dizer à minha irmã: “Vou entrar em depressão daqui a uns dias!” É uma tristeza tremenda, é horrível.
Eu gosto imenso de tourear, gosto mesmo muito. O ano passado ainda fui aos EUA, e em Fevereiro fui à Venezuela gostei imenso, foi fantástico e gostaria de todos os anos poder sair, principalmente para a América Latina, que me fascina.
As oportunidades ainda não chegaram, mas eu sou persistente e sei esperar, hão-de surgir a qualquer momento.
A Sónia é uma das profissionais do toureio que faz questão de demonstrar o seu respeito e afecto pela classe de forcados. Sem eles a festa não era festa?
Eles têm sem sombra de dúvida um papel indispensável na festa. Tenho um grande carinho e admiração por todos os forcados. Com o passar dos anos, já nos conhecemos tão bem, que tenho aquela preocupação de que nada lhes aconteça. Também tenho um primo que foi forcado, o Vinagre que ficou sem uma vista, e por isso percebo o que eles passam nomeadamente situações delicadas que os leva a perder algumas coisas da sua vida.
Eles são indispensáveis à festa, é completamente impensável deixarem de existir os forcados.
Vibra-se muito, dá algum medo, passasse mal, sofre-se, mas sem eles é que não!
Quando falamos em Tauromaquia, qual é a primeira palavra que lhe surge?
Paixão. Eu sou uma apaixonada por esta arte, vivo disto e para isto. Costumo dizer que me dá raiva gostar tanto disto, porque sou completamente apaixonada pelo que faço e uma privilegiada por poder fazer o que gosto. Vivo cada dia com muita intensidade, cada corrida com o máximo de dedicação e aproveito todos os momentos. Esta vida não é um sonho, tem muitos amargos de boca, por vezes sorrimos alguns segundos e choramos muitos minutos, por isso há que aproveitar todos os momentos de felicidade que são muito compensadores.
Quem é Sónia Alexandra Alvéolos Belga Matias?
Sou uma pessoa simples, humilde, teimosa, vaidosa, sou muito feminina.
Sou toureira sim, mas gosto de me cuidar, trato das minha unhas, do meu cabelo, dou muito ênfase ao meu lado feminino.
E sou uma pessoa feliz.
Ana Paula Delgadinho